Vinte anos após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, que estabeleceu o regime jurídico das práticas individuais restritivas de comércio, (entretanto alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 140/98, de 16 de Maio, e 10/2003, de 18 de Janeiro), há muito que se tornara imperativo rever este regime, revisão reclamada quer por produtores quer por distribuidores ainda que por razões diferentes senão mesmo opostas.
Sem conhecer o texto final, uma vez que a sua publicação no jornal oficial ainda não ocorreu e sem pretender analisar do ponto de vista estritamente jurídico, um diploma que tem tanto de novo como de complexo, limitar-me-ei apenas a tecer algumas considerações pontuais sobre o seu teor.
A razão primeira deste novo diploma foi a alteração do art. 3º do DL 370/93 que definia e moldava o conceito de venda com prejuízo, fazendo-o, contudo, de forma tão deficiente e contraditória que a sua aplicação, só suscitou confusão e problemas, entre os agentes económicos, administrativos e judiciais.
A actual redacção deste conceito, expresso no art. 5º da proposta, é consideravelmente melhor, mantendo a essencialidade do conceito, nomeadamente a definição e a possibilidade de levar à formação do preço os descontos de natureza financeira, comercial e de quantidade mas, expurgando do preceito, os aspectos que originaram tantos problemas na sua aplicação como, por exemplo, era o caso de exigir que estes descontos tivessem que estar determinados no momento da factura, exigência que afastava a possibilidade de incluir na formação do preço os descontos diferidos no tempo como era o caso do rappel.
Se esta alteração simples da lei já tivesse sido efectuada há mais tempo ter-se-iam evitando muitas situações caricatas e injustas. Mas o Governo não se ficou por aqui e foi mais longe, na esteira daquela que é uma tendência europeia já traduzida em lei em vários países, introduzindo conteúdos inovadores que atingem directamente o princípio da liberdade negocial e que irão seguramente mudar muita coisa nas relações negociais entre produtores e distribuidores, nomeadamente, as denominadas práticas negociais abusivas (art. 7º) e as medidas cautelares (art. 8).
O conceito de práticas negociais abusivas, até agora vago e indefinido, é densificado através da identificação expressa de algumas práticas consideradas abusivas, nomeadamente, as alterações retroactivas de contratos, a imposição da impossibilidade de venda a outra empresa a um preço mais baixo; a obtenção de preços, condições de pagamento, modalidades de venda ou condições de cooperação comercial exorbitantes relativamente às suas condições gerais de venda; a imposição unilateral, directa ou indirecta de realização de uma promoção de um determinado produto ou de quaisquer pagamentos enquanto contrapartida de uma promoção e a obtenção de contrapartidas por promoções em curso ou já ocorridas.
Por outro lado, apenas no sector agro-alimentar e só quando o fornecedor seja uma micro ou pequena empresa, organização de produtores ou cooperativa, foram proibidas, considerando-se que terão a cominação legal de nulidade, as práticas das empresas de distribuição que rejeitem ou devolvam os produtos entregues, com fundamento na menor qualidade de parte ou da totalidade da encomenda ou no atraso da entrega, sem que seja demonstrada, pelo comprador, a responsabilidade do fornecedor por esse facto; que imponham pagamentos directos ou sob a forma de desconto pela não concretização das expectativas do comprador quanto ao volume ou valor das vendas, pela introdução ou reintrodução de produtos, como compensação por custos decorrentes de uma queixa do consumidor, (excepto quando o comprador demonstre que essa queixa se deve a negligência, falha ou incumprimento contratual do fornecedor) e para cobrir qualquer desperdício dos produtos do fornecedor (excepto quando o comprador demonstre que tal se deve a negligência, falha ou incumprimento contratual do fornecedor), por custos relativos a transporte e armazenamento posteriores à entrega do produto, como contribuição para abertura de novos estabelecimentos ou remodelação dos existentes ou ainda como condição para iniciar uma relação comercial com um fornecedor.
E, se é verdade que estas práticas proibidas ao sector agro-alimentar não terão grande impacto nem aplicação pratica quer pela natureza dos fornecedores quer porque neste sector as empresas de distribuição há muito que desenvolvem relações de parceria com os seus fornecedores, pelo contrário, a proibição das restantes práticas aplicadas a qualquer sector e seja qual for a natureza dos fornecedores, acrescido da brutal elevação dos montantes das coimas aplicadas aos infractores, irá obrigar a mudar radicalmente muitas das praticas até agora existentes entre produtores e distribuidores.
Pode dizer-se que o Governo terá ido longe de mais no detalhe com que descreve algumas práticas ferindo, gravemente, o princípio da liberdade contratual mas vistas bem as coisas, teria de ser assim mesmo de forma a proteger outros princípios igualmente importantes nas negociações, tais como, o princípio do cumprimento do acordado, o princípio da reciprocidade e o princípio da transparência que, demasiado ostensiva e frequentemente, eram violados por práticas menos éticas de algumas empresas de distribuição.
E neste particular, as empresas de distribuição só se podem queixar de si mesmas e muitas delas que são e sempre foram justas, isto é, que sempre foram éticas e correctas, irão agora pagar pelas pecadoras, cujos exageros e abusos reiterados criaram as condições para agora se tornarem, pela via da lei, impostas situações que só nos processos negociais inter partes competiria tratar.
Por outro lado, foram criadas ex novo medidas cautelares e sanções pecuniárias compulsórias como nunca antes se havia feito em qualquer sector de actividade e cuja justificação para tão draconianas medidas, só se poderá encontrar num fundado (?) receio do legislador em que, apesar das proibições e dos elevadíssimos montantes das coimas, ainda assim, os distribuidores prevaricassem.
A lei permite que a entidade fiscalizadora possa determinar, com carácter de urgência e sem dependência de audiência de interessados, a suspensão da execução de uma prática restritiva do comércio susceptível de provocar prejuízo grave, de difícil ou impossível reparação, a outras empresas, sempre que constate que existem indícios fortes da sua verificação, ainda que na forma tentada e aplicar sanções pecuniárias compulsórias que consistem no pagamento de quantias pecuniárias, por cada dia de incumprimento, fixadas segundo critérios de razoabilidade e proporcionalidade, atendendo ao volume de negócios do infractor realizado no ano civil anterior e ao impacto negativo causado no mercado e nos utilizadores pelo incumprimento, podendo o seu montante diário oscilar entre 2 000 EUR e 50 000 EUR.
Considero uma indignidade e um ultraje para o sector da Distribuição, que tanto tem contribuído para a modernização da sociedade portuguesa, para a consolidação do tecido industrial português e para aumentar a acessibilidade de bens essenciais a todas as faixas da população portuguesa, qualquer destas medidas cautelares e respectivas sanções compulsórias.
Afinal que imagem tem o legislador do sector da Distribuição que possa justificar este autêntico regime de excepção? Uma parte do sector está a ser tomada pelo seu todo e em face dos exemplos do passado pretendem-se evitar casos futuros com mão pesada e dura lex.
E agora distribuição? Como vai ser? O que irá mudar?
Para os consumidores nada mudará e a lei não terá qualquer impacto negativo. As empresas irão continuar a praticar os preços mais baixos possíveis e a fazer promoções de diferentes naturezas só que, a partir de agora, negociadas obrigatória e previamente com os seus fornecedores.
Para os fornecedores, seja qual for a sua natureza e dimensão, não há dúvidas que terão a partir de agora nas suas relações com as empresas de distribuição, um aliado de peso ao seu lado chamado lei. A competitividade das empresas fornecedoras não será minimamente afectada e, pelo contrário, sairá naturalmente reforçada. A não ser que as empresas de distribuição começassem a substituir os seus fornecedores nacionais ou europeus por fornecedores de fora da europa que estão excluídos da aplicação da lei, nos termos do art.2º nº2 alínea C) do projecto mas, tal alternativa, não me parece minimamente credível ou possível.
Para as entidades administrativas, nomeadamente para a ASAE, muito vai, de facto, mudar pois a lei confere-lhes novas competências em termos de instrução e decisão dos processos contra-ordenatórios relativos à venda com prejuízo e um acrescido poder quanto à aplicação das medidas cautelares e respectivas sanções sempre que constate a existência de indícios fortes da sua verificação, ainda que na forma tentada, sem necessidade sequer de audição prévia dos interessados facto que me parece de todo inconcebível e abusivo num Estado de Direito.
Para os distribuidores, é óbvio que também irão ser forçados a mudar e muito, a sua maneira de negociar substituindo a arrogância pela humildade, a força pelo diálogo, a imposição pela negociação. Seria bom que a partir de agora, ainda que forçados pela legislação, a distribuição começasse a praticar com os seus fornecedores, realmente e não apenas da "boca para fora," o trabalho em conjunto através de efectivas parcerias e formas de cooptição quer horizontais quer verticais com o objectivo de efectivarem novas propostas de valor para os consumidores finais.
E o pontapé de saída poderia até ser dado, aliás como a proposta sugere no seu art. 16º, através da adopção de instrumentos de auto-regulação, celebrados entre as entidades representativas dos sectores, tendentes a regular as respectivas transacções comerciais e outras formas de colaboração vertical.
Há muitos anos atrás, a produção e a distribuição já dispuseram de um instrumento de auto regulação, na altura o primeiro a ser celebrado a nível mundial, que funcionou e bem, durante alguns anos até que a inércia paralisante, o desinteresse cómodo, o individualismo cego e os egos de alguns, lhe assinaram a certidão de óbito.
Seguido o instrutivo exemplo dos políticos também produtores e distribuidores continuam a jogar às escondidas com os portugueses, exacerbando posições, acentuando diferenças inexistentes, inventando conflitos e problemas com o sádico objectivo de destruir os "inimigos imaginários" que só eles vêm.
Uma revolução ética e cultural na maneira como produtores e distribuidores se relacionam, precisa-se com carácter de urgência. Quem a fará? E se não for feita quem pagará?
UMA REVOLUÇÃO ÉTICA E CULTURAL